Vovó Gertrudes, meio século de amor e assistência a crianças e adolescentes em Florianópolis

Poucas são as pessoas sobre as quais existe unanimidade. Procurando bem, no entanto, as exceções aparecem. E uma delas, em Florianópolis, foi Maria Gertrudes da Luz Gomes, a Vovó Gertrudes, fundadora e durante 47 anos presidente da Avos (Associação de Apoio e Assistência à Criança e ao Adolescente do Hospital Infantil Joana de Gusmão). Não há quem coloque restrições ao trabalho desta mulher que durante quase meio século doou seu tempo e esforço em favor de crianças e jovens doentes e suas famílias, vindas de todos os cantos do Estado para se tratar na Capital.

Maria Gertrudes da Luz Gomes, a Vovó Gertrudes, fundadora e presidente da Avos

Maria Gertrudes da Luz Gomes, a Vovó Gertrudes, fundadora e presidente da Avos – Foto: Foto: Alessandro Darabas/Divulgação/ND

Maria Gertrudes morreu em 15 de janeiro deste ano, duas semanas antes de se tornar nonagenária, e deixou saudades entre todos os que conviveram com ela. A Avos mantém em Florianópolis uma estrutura de apoio capaz de abrigar quem vem de longe, muitas vezes sem condições de pagar um hotel, para realizar consultas e exames, fazer quimioterapia e radioterapia, submeter-se a tratamentos longos e doloridos. A Associação conta com cerca de 90 voluntários e está presente em todas as unidades do hospital que é referência no Estado e na casa que leva o nome de Vovó Gertrudes, onde ficam hospedadas as crianças com câncer e seus acompanhantes.

Ex-diretor da Avos e médico no Hospital Infantil, Maurício Laerte Silva considera Gertrudes uma visionária que “tinha um amor pelo hospital como nunca mais vou encontrar”. Ela abria mão de compromissos pessoais e das demandas familiares para estar no hospital e na casa de apoio, onde chamava as crianças doentes de “filhos” – mesmo tratamento que dava às voluntárias mais jovens com quem conviveu durante muitos anos. Além da parte técnica e dos recursos que precisava buscar, estava sempre preocupada com a qualidade de vida dos pacientes. “Ela praticamente morava no hospital”, diz o médico Maurício.

O cuidado com quem estava próximo

“Foi a melhor pessoa que conheci”, afirma Selma Luíza Cardoso, voluntária do hospital Joana de Gusmão há mais de 30 anos, sobre Vó Gertrudes. Elas se tornaram amigas íntimas, Selma acompanhou os últimos dias da ex-presidente da Avos e recorda que já numa cadeira de rodas, após uma cirurgia a que foi submetida, ela compareceu à inauguração da nova UTI do hospital. A voluntária conta que começou a trabalhar na residência de Gertrudes e um mês depois já ia com ela ao hospital, que “era a sua casa”.

“Ela me considerava como a filha que não teve”, diz Selma, emocionada. “Pessoalmente, me tornei uma pessoa melhor e mais humana por causa dela. Vovó Gertrudes se preocupava com os outros e percebia quando alguém próximo a ela não estava bem. Eu fiquei doente e tentava disfarçar, mas ela percebia tudo e perguntava sobre meu estado de saúde. No fim da vida, me pediu para cuidar bem da Avos”.

Uma companhia pela vida a fora

Boas lembranças sobre Vó Gertrudes não faltam também a Juan Alves Vieira, que foi diagnosticado com câncer na próstata e na bexiga aos oito meses de idade e ficou em tratamento até os 13 anos, quando saiu curado. Formado como técnico de enfermagem, ele tem poucas recordações do primeiro período que passou no Hospital Infantil, e mesmo da fase mais aguda do tratamento, mas ressalta que recebeu ali a melhor das atenções. Ainda hoje guarda as fotografias das festinhas de aniversário das crianças no ambulatório de oncologia do hospital.

Vovó Gertrudes ao lado de outra mulher e um menino

Vovó Gertrudes deixou legado em Florianópolis – Foto: Reprodução/NDTV

“A Avos teve um papel muito importante para mim”, diz Juan. “Dona Gertrudes me procurava sempre, mesmo depois que eu saí, me ajudou a pagar os estudos e queria saber que curso eu pretendia fazer na universidade. Perguntava pela minha saúde e como estava minha família. Me chamava de ‘filho’ e foi à minha formatura. É gratificante ver o que ela construiu”.

“Era uma líder nata”, diz presidente da Avos

Atual presidente da Avos, Zélia Maria da Silva Rocha se tornou voluntária na oncologia do Hospital Infantil após perder um filho de 13 anos, em 1986. Também chamada de “filha” por Maria Gertrudes, diz que muito do que foi conquistado, como os laboratórios e a UTI neonatal, que ajudaram a tornar o Infantil uma referência no país, se deve ao empenho da fundadora da associação. Sem falar na casa de apoio, que funciona como um relógio e que tem a mão dela em todos os cantos. “Era uma líder nata e nunca deixou faltar nada para as crianças e suas famílias”, afirma Zélia Maria.

As pessoas que trabalham na Avos são chamadas de “amarelinhas”, por causa da cor dos uniformes e jalecos que usam. Por tabela, Gertrudes era a “Vó Amarelinha”, além de “mestra” e “mãe do hospital”. Quando ela estava hospitalizada, a atual presidente foi ao hospital visitar Gertrudes, que mesmo sedada respondeu aos estímulos. “Ela deixou um lindo legado para todos os voluntários”, diz Zélia. “Enquanto eu tiver saúde, vou continuar aqui, sem deixar faltar nada, porque essa era uma preocupação dela”.

O voluntariado e as políticas públicas

O voluntariado é muito importante num país de tantas carências como o Brasil, mas não deve fechar-se em si mesmo. Para o padre Vilson Groh, há mais de 40 anos dedicado às causas de pessoas que vivem em situação de vulnerabilidade social, “um trabalho como o de dona Gertrudes tende a ajudar na construção de políticas públicas”. Se as boas ações de pessoas desinteressadas e anônimas são fundamentais, “o papel do Estado é construir direitos e investir numa educação e saúde de qualidade, dando dignidade a todos”. O direito à terra, ao teto e ao trabalho é a tríade defendida pelo papa Francisco, um entusiasta dos movimentos populares muito citado nas falas do padre Groh.

Vovó Gertrudes cercada de pessoas

Vovó Gertrudes foi fundadora e durante 47 anos presidente da Associação de Apoio e Assistência à Criança e ao Adolescente do Hospital Infantil Joana de Gusmão – Foto: Reprodução/NDTV

“Vó Gertrudes fez um trabalho construtivo e voluntário que pede a coparticipação da gestão pública, unindo duas vertentes que se constroem coletivamente”, reforça o padre. O voluntariado é uma luta do dia a dia, mas reflete um grito por justiça social e pela melhor distribuição da renda. Para o religioso, as ações do Terceiro Setor devem ajudar a construir e rediscutir as funções do Estado, com políticas estruturais e estruturantes que assegurem direitos, e não apenas assistencialismo.

O diferencial do voluntariado é que extrapola o plano das ideias para se materializar na concretude da realidade. A parceria entre o Instituto Vilson Groh e a Avos é definida pelo padre como “um trabalho em rede que fala com as pessoas”. Sobre as ações de Vó Gertrudes, o padre Groh afirma que vão permanecer como “um grande legado concreto”, que cria novas esperanças para os necessitados. “Não podemos perder a esperança e a coragem, mesmo com os impactos ambientais e as guerras”, ensina o padre. “Não há justiça ecológica sem justiça social”.

“Da cidade antiga, lembro da praça Getúlio Vargas. Foi ali, cuidando de uma barraquinha durante a festa do Divino Espírito Santo, que conheci Carlos Bastos Gomes, que viria a ser meu marido. Eu tinha 13 anos, e ele, 24, já estudante de Direito. Casei aos 18, e ficamos 55 anos juntos, até a morte dele. Foi comerciante e se aposentou como funcionário do Tribunal de Contas do Estado. Quando retornava de Tijucas, onde ia visitar a família, eu dizia para as amigas: ‘Ele está voltando, já sinto o perfume dele’. Viajamos muito e conhecemos grande parte do mundo, incluindo a Índia, a China, a Grécia e Cingapura. Foi um amor muito grande”. – Maria Gertrudes da Luz Gomes, em entrevista ao ND em agosto de 2021

Associação ajuda a melhorar a estrutura do Hospital Infantil

A Associação de Apoio e Assistência à Criança e ao Adolescente do Hospital Infantil Joana de Gusmão foi criada em agosto de 1975 no antigo Hospital Edith Gama Ramos, já com o papel de dar atendimento às crianças e adolescentes internados ou em tratamento, estendendo a assistência também às famílias dos doentes. O voluntariado prosseguiu quando a casa de saúde mudou de nome, em 1979, e durante essas mais de quatro décadas proporcionou a construção de alas, a compra de equipamentos hospitalares, a doação de alimentos para pacientes de baixa renda e a distribuição de fraldas e roupas para pacientes necessitados e seus familiares.

Os cerca de 90 voluntários da Avos trabalham diariamente no hospital e na Casa de Apoio Vovó Gertrudes e ajudam a concretizar um trabalho que se mantém graças à renda proveniente de doações e projetos sociais. As receitas também permitem o custeio de reformas e ampliações do hospital, que é de referência nos atendimentos de média e alta complexidade a pacientes de zero a 15 anos. A arrecadação também ajuda na aquisição de medicamentos e no pagamento de consultas e exames não cobertos pelo SUS.

Com 1.800 metros quadrados, a casa de apoio conta com 20 apartamentos, cozinha, lavanderia, brinquedoteca, capela, refeitório, auditório e salas de convivência e informática. Tem capacidade para atender mensalmente 250 pessoas, entre crianças e adolescentes com câncer e seus acompanhantes.

“Aprendi com o dr. [Murillo Ronald] Capella que não se pode chorar na frente das crianças. Uma vez, antes de ir para a praia com meu marido, resolvi passar no hospital e deixar um bolo para uma menina que fazia aniversário. Chegando lá, fiquei sabendo que ela tinha morrido. Aguentei firme, a fui chorar lá fora”. – Maria Gertrudes da Luz Gomes

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