Entoada de escolas a festas: a história da música ‘Lagoa da Conceição’, hit desde os anos 1970

Uma letra simples, um canto de raiz, um sucesso antes mesmo da primeira gravação. Quando o grupo Engenho, de saudosa memória, lançou um vinil com a faixa “Lagoa da Conceição” (que batizou de “Barra da Lagoa”), em 1981, a composição de Orlando Carlos da Silveira Mello, o Neco, já era entoada em escolas, festas, casamentos e eventos populares de Florianópolis. E, até hoje, pode-se ouvir gente recitando, baixinho, os versos “Lá na Barra da Lagoa/Lagoa da Conceição”. São 34 gravações, entre autorizadas ou não, com um detalhe: na voz do autor, a música continua inédita.

composição de Orlando Carlos da Silveira Mello, o Neco – Foto: LEO MUNHOZ/ND

Composta em 1976, o cinquentenário de “Lagoa da Conceição”, daqui a três anos, deve ser o mote para que, enfim, Neco grave a versão própria de seu rebento mais conhecido. Ele e a companheira Maria da Graça Brum, também cantora e compositora, estão empenhados em viabilizar o projeto de um CD ou em outra plataforma que volte a difundir uma música que ganhou o mundo e está na memória e de muitos nativos da Ilha de Santa Catarina.

Neco tinha 18 anos quando fez a letra, mas muito antes, na adolescência, já frequentava as rodas de artistas e acampava com seu violão e amigos. Ouvia Luiz Henrique Rosa, um dos brasileiros que ajudaram a difundir a bossa nova no mundo, e Zininho, o autor do “Rancho de amor à Ilha”, o hino de Florianópolis. Mais que isso, viu como eles compunham e cantavam.

“Após voltar dos Estados Unidos, no início da década de 1970, Luiz Henrique tocava numa boate que abriu no Praia Clube, em Coqueiros, e ensaiava ali todas as semanas”, conta Neco. “Um dia, levei meu violão e comecei a brincar. Ele me convidou para entrar e acompanhar o ensaio”. Começou então uma fase decisiva, porque os moradores da praia da Saudade, onde ficava a boate, costumavam ir até a Lagoa da Conceição para apanhar siris e camarões.

Esse fator e as amizades que fez com pescadores resultaram na inspiração do compositor, também autor de “Coisas do mar”, que em 2002 o cineasta Zeca Pires usou no filme “Perto do mar”, produção feita pela TVI de Portugal baseada num conto do escritor Salomão Ribas Jr. “Descobri a exuberância e a fantástica energia da Lagoa da Conceição”, conta Neco. De quebra, a batida do boi de mamão e do terno de reis foi entrando na sua música.

Neco estava em casa, em Coqueiros, num dia chuvoso, e a letra de “Lagoa da Conceição”, que já vinha matutando, saiu de repente. “Parecia que estava pronta na cabeça”, afirma. Começou a rabiscar, e em 10 minutos a composição ficou pronta, em duas estrofes que refletem tudo o que o autor queria dizer. A data do feito: 14 de maio de 1976. Dali para frente, é a história que todos conhecem.

Dois bares que marcaram época na cidade

A presença de Orlando Mello no cenário cultural de Florianópolis sempre foi marcante – e já dura 48 anos. Ele foi um dos criadores e o principal animador da Feirarte, um evento que mesclava arte, artesanato, música, teatro e folclore entre a catedral metropolitana e a praça 15 de Novembro, aos sábados. Realizada entre 1985 e 988, foi ali que Neco lançou Valdir Agostinho, um multiartista com trabalho igualmente enraizado na alma da Ilha. Aquela experiência deixou frutos e hoje acontece, em moldes semelhantes, durante a Feira de Cascaes.

Depois de mostrar seus dotes no violão e compor músicas que marcaram, ele criou o Rancho do Neco, que entre 2001 e 2015 atraiu muita gente para a Ponta do Sambaqui, onde os melhores sambistas e instrumentistas da cidade se apresentavam – por ali também desfilaram artistas de fora, como o uruguaio Jorge Drexler. Quando passou o bar para frente, abriu o Qualé Mané, na praça Olívio Amorim, no Centro, outro local que deixou saudades quando precisou fechar as portas na pandemia da Covid-19. “A casa mudou toda a região da avenida Hercílio Luz”, orgulha-se o músico.

Nascido em São Leopoldo (RS), mas radicado em Florianópolis desde a infância, Neco nunca deixou de compor, nem durante os 29 anos em que trabalhou no serviço público. Pertence a “uma geração que criou a sua matriz musical”, nas suas próprias palavras. Hoje, ele e Maria da Graça participam do grupo Raízes, mantido pela Casa dos Açores de Santa Catarina, que faz apresentações de dança e música em todo o litoral catarinense.

O filho de pescador que não morreu no mar

O vínculo da música “Lagoa da Conceição” com Florianópolis é tão forte que era cantada antes da primeira gravação e continua na boca do povo mesmo depois que muitos artistas que a interpretaram saíram de cena. O Chicão citado na letra era um amigo do compositor, filho de pescador, mas não pereceu no mar, como está na letra. Na música, ele morre de cansaço, como ocorreu com muitos homens que se lançaram atrás de peixes e de sustento – e que foram tragados por ondas traiçoeiras ao longo de séculos da atividade no litoral catarinense.

O vínculo da música “Lagoa da Conceição” com Florianópolis é tão forte que era cantada antes da primeira gravação – Foto: LEO MUNHOZ/ND

Na segunda metade dos anos de 1970, a pedido de um professor amigo, Wilson Steffen Neto, o autor levou suas músicas para escolas do município e se surpreendeu, tempos depois, quando alunos e pais o ajudaram a cantar a letra de “Lagoa da Conceição” numa festa junina realizada na Barra. Em 1979, tentou inscrevê-la no Festival Universitário da Canção da Furb, em Blumenau, e teve o pedido negado sob a alegação de que não era mais inédita. Na verdade, era, mas estava tão difundida que ele não conseguiu demover os organizadores de sua decisão.

Além do grupo Engenho, outros artistas e bandas gravaram “Lagoa da Conceição”, cada um com arranjos próprios. Um desses casos foi a versão do professor, regente e arranjador Carlos Besen para a Associação Coral de Florianópolis. Também houve gravações do Polyphonia Khoros, do Coral Hélio Teixeira e do Coral da Unesc.

Um dos feitos que Neco faz questão de citar é o compacto “Ponta do Sambaqui”, que gravou em 1982 com a participação de feras como Letieres Leite (arranjos e flauta), Luiz Meira (violão), Alegre Corrêa (guitarra), Joel Brito (sax alto), Lauro Bandeira (percussão) e Márcio Correia (piano). Em 1996, ele fez a música tema do espetáculo “Catharina! Uma ópera na Ilha”, dirigido por Lau Santos e que chegou a ser apresentado na Expo98, em Lisboa.

Sem compor há muitos anos, Neco continua fazendo a produção de eventos artísticos e planejando ações para driblar a ditadura do streaming. A gravação de “Lagoa da Conceição”, junto com letras inéditas, na companhia de músicos amigos, está entre os planos. Se tudo der certo, vai produzir um clip que espera divulgar maciçamente, reforçando ainda mais a presença de seu clássico no imaginário dos catarinenses.

Letra da música

Hoje tô triste, pescador
Perdi o amigo Chicão
Morreu de cansaço dos barcos
Lá na Barra da Lagoa
Lagoa da Conceição
Lagoa da Conceição

Hoje não tem cantoria
Nem vai ter boi de mamão
Renda em dobro pra Maria
Que é rendeira da Lagoa
Lagoa da Conceição
Lagoa da Conceição

Adicionar aos favoritos o Link permanente.