Florianópolis guarda e exibe a obra que inaugurou a arte tridimensional no Brasil; conheça

Uma obra rara, tocante e valiosíssima – por causa da dimensão histórica e pelo tempo decorrido entre sua confecção e os dias de hoje – poderá ser vista pelos florianopolitanos e catarinenses a partir do dia 20 deste mês no Instituto Collaço Paulo, no bairro Coqueiros, na Capital.

Restauradora Sara Fermiano recuperou e recolocou no lugar as pequenas conchas que decoram a obra

Restauradora Sara Fermiano recuperou e recolocou no lugar as pequenas conchas que decoram a obra – Foto: LEO MUNHOZ/ND

Trata-se do oratório “São João Batista e Cordeiro”, criado no final do século 18 pelo artista Francisco dos Santos Xavier (1739-1814), conhecido como Xavier das Conchas, que nasceu no Rio de Janeiro e morou durante 32 anos na cidade do Desterro, antigo nome de Florianópolis. A peça faz parte da exposição “Etérea”, com obras do acervo do instituto, que ficará aberta até 29 de junho de 2024.

O oratório contém a figura de São João Batista menino com um cordeiro, o conjunto da Sagrada Família, Santo Antônio e São Judas Tadeu, estes em tamanho menor. A obra tem 64 cm de altura, 37 cm de largura e 19,5 cm de profundidade e foi confeccionada com centenas de pequenas conchas marinhas, pedra sabão e elementos de ouro e prata. Na sua constituição, exibe também detalhes em tecido, madeira (escultura e suporte), metal e areia colada, além de cascas de pequenos caramujos. O artista usou papel para forrar pétalas de flores e papel dourado para os resplendores.

Integrante do acervo da coleção Collaço Paulo, a peça passou por uma minuciosa restauração no atelier de Sara Fermiano, ex-funcionária do Atecor (Atelier de Restauração e Conservação), da Fundação Catarinense de Cultura. De acordo com a professora Sandra Makowiecky, membro da Associação Internacional de Críticos de Arte, a obra marcou o início da trajetória tridimensional na arte produzida em Santa Catarina. “É fenomenal”, diz ela, ressaltando que se trata da peça mais antiga do circuito de arte no Estado.

Poucos rastros documentais

A trajetória do artista deixou poucos rastros documentais em Santa Catarina. Quem resgatou sua passagem pelo Estado foi o historiador Henrique Boiteux, que esclareceu, inclusive, a origem carioca de Xavier das Conchas. Chegou-se a dizer que ele era catarinense como o amigo e contemporâneo Francisco Xavier Cardoso Caldeira, o Xavier dos Pássaros – este sim nascido no Desterro –, diretor do Gabinete de História Natural do Brasil e das Américas, criado em 1784, no Rio de Janeiro. Os dois chegaram a ser confundidos ou vistos como uma pessoa só por estudiosos da arte no Brasil.

Artista utilizou pequenas conchas marinhas, pedra sabão e elementos de ouro e prata na obra de São João Batista – Foto: LEO MUNHOZ/ND

Xavier das Conchas veio muito jovem, em 1752, quando tinha 13 anos, para Santa Catarina. Ficou nove anos no comando da fortaleza da Barra do Sul, também conhecida como forte de Araçatuba, na saída para o mar aberto, na altura da Praia do Sonho, em Palhoça, e do farol de Naufragados, na Ilha. Teria sido nesse cenário que ele deu vazão aos dotes artísticos que tinha, aproveitando o conhecimento empírico dos moradores da região e a abundância de conchas, escamas e outros materiais fornecidos pelo mar.

Dois artífices geniais requisitados pelo vice-rei

Em terras catarinenses, Xavier das Conchas foi soldado, cabo de esquadra, condestável (posto militar graduado), almoxarife das fortalezas e ajudante. Sabedor de seu talento, Valentim da Fonseca e Silva (1745-1813), o Mestre Valentim, respeitado arquiteto e entalhador ligado à corte, o convidou para ornamentar um dos pavilhões quadrangulares do passeio público do Rio de Janeiro, pago com soldo autorizado pelo vice-rei Luis de Vasconcelos e Sousa. O mesmo convite foi feito a Xavier dos Pássaros.

Requisitado por tal autoridade, ele foi para o Rio com os dois filhos, pois tinha ficado viúvo no Desterro, e lá, durante três meses, participou da edificação do passeio, uma obra grandiosa que ajudou a transformar a cidade que abrigava o governo colonial. O passeio público carioca foi o primeiro do gênero no Brasil e é tido como o espaço pioneiro de exposições no país, razão pela qual os Xavier são considerados os primeiros museólogos brasileiros.

O artigo “Mestre Valentim e a arte catarinense”, publicado em 1918 por Henrique Boiteux, membro do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, permitiu que pesquisadores descobrissem a dupla participação do Estado na grande obra do vice-rei. O outro pavilhão do passeio público foi entregue à decoração de Xavier dos Pássaros, que morreu no Rio, em 1810.

Xavier das Conchas se casou de novo no Rio de Janeiro e morreu aos 75 anos, quando exercia a função de tenente coronel e governava a fortaleza da Conceição, até hoje em pé no bairro carioca da Saúde.

Dois artistas que conviveram na província

A professora Sandra Makowiecky é autora de um alentado estudo sobre a participação de Xavier dos Pássaros e Xavier das Conchas na construção do passeio público do Rio de Janeiro, no final do século 18. O primeiro, nascido em Santa Catarina, era entomologista e taxidermista, ou seja, colecionava e empalhava insetos e animais (aves, especialmente), e foi um dos braços direitos do Mestre Valentim. Já Xavier das Conchas trabalhava com peças do mar, ofício que aprendeu quando exerceu funções militares na cidade do Desterro. Ela considera o oratório “simplesmente fantástico, detalhado e minucioso”.

Sobre Xavier dos Pássaros, há vasta bibliografia e fontes primárias para pesquisa no Rio, porque ele é considerado o patrono dos museus brasileiros e foi o primeiro diretor da chamada Casa de História Natural, que os cariocas batizaram de Casa dos Pássaros e que foi extinta por Dom João 6º em 1813. Com menos rastros documentados, os oratórios do outro Xavier asseguraram prestígio ao seu nome para sempre.

Os dois se conheceram e foram contemporâneos em Santa Catarina, embora não haja, aqui, notícias de seus passos e de descendência. O que ficou mais evidente para a história é que os dois artífices trabalharam com Mestre Valentim e dividiram espaço com Leandro Joaquim, um conhecido pintor, cenógrafo e arquiteto do Brasil colônia que também teve participação no projeto do passeio público. Os dois pavilhões foram demolidos mais tarde e deles só sobraram esparsas litogravuras.

A odisseia até chegar a Santa Catarina

Há casos em que a sorte é companheira dos colecionadores. O oratório “São João Batista e Cordeiro” estava no interior de Minas Gerais, em posse de um amante das artes sacras que passava por sérios problemas de saúde e queria se desfazer da peça.

Artista detalhou a Sagrada Família e Santo Antônio – Foto: LEO MUNHOZ/ND

Participando de um grupo de estudos que se reúne virtualmente todas as semanas, a professora Sandra Makowiecky ficou sabendo por meio de um crítico mineiro que o referido colecionador tinha interesse em vender parte das obras.

“Perguntei se ele tinha algum Xavier das Conchas, ele pesquisou e no dia seguinte confirmou que sim”, conta Sandra. “Pedi mais informações e então falei com Marcelo Collaço Paulo. No final, deu tudo certo. Acho que a aquisição da obra é uma grande conquista para Santa Catarina”, ressalta.

“É uma obra singela, mas que tem muita força”, diz Collaço Paulo, que não é propriamente um colecionador de obras sacras, mas não poderia perder essa oportunidade. Conhece os grandes artífices brasileiros do gênero e nas viagens que faz ao exterior costuma visitar igrejas e apreciar obras do gênero em museus e galerias. “Gosto da arte sacra pela sua gestualidade e porque ela fala diretamente com as pessoas”, explica. São obras que mexem com a fé e a devoção, e é comum que uma peça fique mais de um século com a mesma família, passando de pai para filho.

Collaço tinha algumas informações sobre Xavier das Conchas graças a pequenos retábulos de sua coleção, mas acredita que o artista foi influenciado pela matriz açoriana da cultura do litoral catarinense. Considera o artista um leigo que fazia peças por prazer e talvez para vender, mas cujo legado, altamente refinado, granjeou-lhe prestígio e reconhecimento como o primeiro criador de obras tridimensionais do Brasil.

São Judas Tadeu também é representado no oratório – Foto: LEO MUNHOZ/ND

Collaço Paulo conta que “foi uma odisseia” a vinda do oratório para Florianópolis, pela delicadeza da peça e pelos cuidados exigidos no transporte. “Os colecionadores sabem esperar”, brinca ele ao dizer que está habituado à demora em ver obras muito desejadas entrando em sua coleção. Sem catalogação, o oratório não tem data e assinatura, pois esse tipo de cuidado não era comum entre os artistas daquela época.

Em seu atelier, a restauradora Sara Fermiano recuperou e recolocou no lugar as pequenas conchas que constituem as flores que decoram o cenário principal do oratório – as imagens dos santos e da Sagrada Família. “Não havia danos significativos”, diz ela sobre o estado da peça.

Formada em artes e com especialização em museologia, Sara recolocou em seu lugar cascas de mariscos (algumas delas chegaram quebradas), a mão de São José (igualmente rompida) e dois vidros avariados. No geral, afirma ela, “estava tudo bem preservado, com os materiais bem estáveis”, descreve.

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