Novos manicômios: especialistas rechaçam internações violentas nos moldes de Balneário Camboriú

Com uma arma na cabeça e ameaças de agressão: é como Antônio* e Jairo* lembram de terem sido levados por agentes da Guarda Municipal de Balneário Camboriú para Biguaçu. Eles e outros dois homens, Eduardo* e Felipe*, denunciam a internação forçada de pessoas — com casa ou não — no Instituto Redenção, localizado na Grande Florianópolis.

A série de reportagens “À sombra dos arranha-céus” revela denúncias de ameaça e agressão na conduta de internação involuntária de Balneário Camboriú junto ao Instituto Redenção, em Biguaçu. O convênio entre prefeitura e a comunidade terapêutica foi alvo de uma investigação interna e de duas investigações do MPSC (Ministério Público de Santa Catarina), que apuram irregularidades no contrato e denúncias relacionadas à abordagem social.

Antônio* denunciou ter sido levado à força pela Guarda Municipal de Balneário Camboriú até o Instituto Redenção, em Biguaçu, na Grande Florianópolis – Foto: Leo Munhoz/ND

Antônio*, morador de Balneário Camboriú, relata ter sido levado por uma van preta Mercedes, que passou pela esquina de sua casa por volta da meia-noite de 3 para 4 de janeiro. Na van, conheceu Jairo, que horas antes havia sido abordado pelos agentes da Guarda Municipal quando bebia uísque no estacionamento de um supermercado na cidade.

Por agentes da mesma van preta mencionada por Antônio e Jairo, Eduardo foi levado no dia 8 de janeiro. Dez dias depois, foi a vez de Felipe, abordado na madrugada de 18 de janeiro, segundo seu relato.

“Eu estava na Praia Central, eles me pegaram e me trouxeram para cá [Biguaçu]. Vou fazer o que? Deixar eles me baterem? O cara tá com um fuzil e um cacete do teu lado e te manda entrar na van, você vai”, lembra Felipe.

Para Antônio e Jairo, a situação foi ainda pior. “Eles não me bateram, mas o rapaz que tava comigo eles bateram bastante, se a gente se mexesse eles iam atirar, a gente foi o caminho inteiro com a arma na cabeça”, relata Jairo, morador de Barra Velha, e que estava em Balneário Camboriú para visitar o sobrinho.

Internação involuntária é medida excepcional, explica promotor

O promotor de Justiça Douglas Roberto Martins, coordenador do CSP (Centro de Apoio Operacional da Saúde Pública) do MPSC, explica em qual contexto a internação involuntária é permitida.

“Muito excepcionalmente, quando essas estratégias não tiverem dado certo e, por uma questão de necessidade de saúde daquele sujeito, para melhoria de uma condição específica dele, de uma situação de crise, de surto, a internação pode ser adotada como estratégia”, relata.

A internação involuntária é prevista nas leis federais 10.216 e 11.343, que atendem o direito de pessoas com transtornos mentais ou dependentes químicos.

Conforme a legislação, essas pessoas só poderiam ser internadas em Caps III (Atende pessoas em intenso sofrimento psíquico decorrente de transtornos mentais graves e persistentes) ou Caps AD III (atende dependentes químicos em sofrimento psíquico intenso e necessidades de cuidados clínicos contínuos). Comunidades terapêuticas como o Instituto Redenção não se encaixam nessa categoria.

Martins elucida como o município deve recorrer quando não há instituições próprias para a internação involuntária.

“Excepcionalmente quando não tem vaga ou quando não existe CAPS III ou CAPS AD III, como é o caso de grande parte dos municípios aqui do Estado, então essa internação é feita em hospital geral em leito de saúde mental. Comunidade terapêutica não faz internação involuntária em hipótese nenhuma”, destaca.

O promotor ainda afirmou que projetos de leis voltados para a internação involuntária não podem ser pensados para o bem-estar de terceiros e sim, das pessoas que serão internadas.

“Não pode ser uma política de proteção social, digamos assim, ou uma política que tenha por objetivo alcançar todo um grupo de pessoas. As internações acontecem, como eu havia dito, inseridas dentro de um projeto terapêutico individual, olhando para as necessidades daquele sujeito, para o que ele precisa para a recuperação da sua saúde”, completa.

Municípios de SC apelam ao legislativo para internar involuntariamente

Em Florianópolis, o prefeito Topazio Neto (PSD) sancionou no dia 4 de março a Lei que prevê a “internação humanizada” das pessoas em situação de rua. O projeto, apresentado pela própria prefeitura, foi votado e sancionado dentro de um intervalo de 40 dias.

O texto prevê que cada indivíduo abordado terá que passar por um médico, para que, atestada sua necessidade de internação, seja submetido ao prazo de 90 dias para desintoxicação. Esse período, no entanto, poderá ser suspenso a qualquer momento se for do entendimento dos familiares.

Ainda na Lei sancionada na capital catarinense, há a indicação de que a internação pode ocorrer “com ou sem o consentimento da pessoa”. Em casos de internação involuntária, o Ministério Público de Santa Catarina precisa ser comunicado, bem como a Defensoria Pública, em até 72h.

O mesmo movimento foi feito por outros prefeitos de Santa Catarina. Em São José, a Câmara de Vereadores aprovou, também em 4 de março, o projeto de lei que institui o Programa de Internação Involuntária de Dependentes Químicos no município, apresentado pelo prefeito Orvino Coelho de Ávila (PSD) em 6 de fevereiro.

Em Chapecó, o prefeito João Rodrigues (PSD) defendeu o mesmo projeto, voltado para dependentes químicos. Em um vídeo divulgado nas redes sociais, ele promete, a partir de uma lei em elaboração, “remover” todos os dependentes químicos da cidade do Oeste de Santa Catarina com o apoio da Guarda Municipal.

“Fica expressamente proibido a permanência de dependentes químicos em ruas, praças e logradouros, terrenos baldios, construções ou qualquer outro espaço podendo o poder público removê-los imediatamente do local e conduzindo para outro ambiente com a Guarda Municipal, com o apoio das forças de segurança. Não ficará mais ninguém na cidade de Chapecó, se drogando em lugar nenhum”, afirmou.

Novos manicômios

Vinicius Lanças, doutor em sociologia política pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e porta-voz de organizações que estiveram em um ato contra a internação involuntária em Florianópolis, ocorrido em fevereiro, ressaltou a dificuldade que pessoas que são internadas involuntariamente têm para provar que não pessoas em situação de rua.

“O que a gente tem visto que aconteceu com os manicômios no século passado, até a pessoa provar, ela já está presa, dopada, provavelmente sendo de alguma forma física ou moralmente torturada. Até ela explicar, ela já está trancafiada numa clínica, porque é involuntária. Tem um ditado onde eu nasci que fala que até você provar que dobradiça não é borboleta, você já viu muita porta voando”, criticou.

Para o sociólogo, um dos principais problemas da internação compulsória validada como política pública é o risco de que abordagens abusivas tais quais as relatadas por Antônio, Jairo, Eduardo e Felipe sigam acontecendo.

“O que eu quero dizer na prática é o seguinte: se uma pessoa estiver, por exemplo, bêbada na praia e for abordada por esses agentes e ela não tiver documento, mesmo que ela seja da família mais rica, até ela explicar, ela já vai estar sob efeito de entorpecentes que os psiquiatras vão dar para ela, presa numa clínica”.


A série de reportagens “À sombra dos arranha-céus” revela denúncias de ameaça e agressão na conduta de internação involuntária de Balneário Camboriú junto ao Instituto Redenção – Ilustração: Gil Jesus da Silva

*Embora os personagens desta série de reportagens sejam reais, os nomes citados são fictícios e resguardam as identidades das fontes

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